Flávia Gouveia/Conhecimento & Inovação/Labjor/SP/DICYT - Desde o anúncio da existência de reservas de petróleo e gás na faixa do subsolo oceânico brasileiro que antecede a densa camada de sal – o chamado pré-sal – muito se tem noticiado sobre o tema: regulamentações, sistemas de exploração e produção, privilégios, concorrência, investimentos e retornos. Mas para entender as discussões é preciso também conhecer os aspectos científicos e tecnológicos e seus desdobramentos.
A
descoberta do “ouro negro” na bacia sedimentar de Santos (RJ e SP) e no
Parque das Baleias (ES – pertencente à Bacia de Campos) data de 2006 e
tem desviado as atenções do mundo, então focadas na produção da
cana-de-açúcar para fabricação de etanol, no contexto de crise
energética e preocupações ambientais.
O
petróleo encontrado situa-se numa área de 800 quilômetros de extensão
entre os estados do Espírito Santo e Santa Catarina, em profundidades
que ultrapassam os 7 mil metros em relação ao nível do mar, o que exige
um domínio tecnológico nada trivial para que seja extraído e bem
aproveitado. As reservas do pré-sal ainda não foram totalmente
identificadas e mensuradas. Apenas os volumes de produção potencial nas
áreas de Tupi, Iara, Guará e Parque das Baleias foram anunciados, o que já representa mais que o dobro da produção originada pelas
demais reservas já conhecidas no país.
Os
volumes totais previstos vão de 10,6 a 16 bilhões de barris de óleo
equivalente (boe - que inclui petróleo e gás) recuperáveis, assim
distribuídos: 5 a 8 bilhões de boe em Tupi; 3 a 4 bilhões de boe em
Iara; 1,1 a 2 bilhões de boe em Guará e 1,5 a 2 bilhões de boe no Parque
das Baleias (que inclui Jubarte, Baleia Branca e Baleia Azul). A
Petrobras prevê que esses campos produzirão mais de 1,8 milhão de barris
por dia em 2020. Somando-se o restante da produção brasileira, o país
deverá gerar cerca de 4 milhões de barris/dia. “Mas essas estimativas
dependerão também da taxa de sucesso atingida, que é considerada alta
quando o aproveitamento das jazidas é de 70 a 80%”, explica José
Goldenberg, professor do Programa de Pós-graduação em Energia do
Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE) da USP.
Toda
a euforia em torno da descoberta de petróleo no pré-sal explica-se no
contexto de previsões de aumento da demanda mundial e de aproximação do
prazo de esgotamento das jazidas conhecidas, de extração mais fácil.
“Infelizmente, o mundo ainda é muito dependente desse recurso
não-renovável”, diz Goldenberg. Segundo as previsões da Agência
Internacional de Energia (AIE) para 2010, a demanda mundial de petróleo
deve crescer, em função da recuperação da economia mundial – e sobretudo
da Índia, China e países ricos do Ocidente –, para quase 1,5 milhão de
barris por dia, chegando a 86,3 milhões de barris diários.
Tecnologia para a descoberta
Mas o petróleo existente na camada pré-sal não é de fácil extração e mesmo sua descoberta envolveu esforços significativos. Graças aos avanços na área de sísmica de reflexão foi possível detectar jazidas abaixo de uma camada salina que chega a 2 mil metros de espessura e com temperaturas muito elevadas. Os materiais para prospecção e extração são submetidos a variações de temperatura superiores a 80º C. Atualmente, a geofísica é capaz de oferecer novas tecnologias capazes de melhorar o imageamento dos dados em profundidade, como fontes acústicas com maior potência, coletas repetitivas (4D) e técnicas wide azimuth para melhorar a resolução do sinal sísmico no reservatório.
A
prospecção do petróleo em grandes profundidades é feita principalmente
por meio de atividades sísmicas, autorizadas somente com a obtenção de
licença do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (Ibama). A Petrobras obteve essa licença em áreas
localizadas na Bacia de Santos e estimou que, para os campos de Tupi e
Iracema, do bloco chamado BM-S-11, as reservas são de 5 a 8 bilhões de
barris de óleo recuperáveis.
Qualidade superior
O óleo do pré-sal é de densidade considerada média, baixa acidez e baixo teor de enxofre, características de um óleo de boa qualidade e preço satisfatório no mercado petrolífero. A qualidade do petróleo é medida pela escala API, desenvolvida pelo Instituto Americano de Petróleo (API, na sigla em inglês), segundo a qual um óleo com densidade maior que 30° API é classificado como leve, enquanto um óleo pesado tem menos de 19° e apresenta alta viscosidade e alta densidade. A referência internacional de alta qualidade é o petróleo com mais de 40° API, como é o petróleo árabe. No Brasil, o petróleo de melhor qualidade foi descoberto em 1987, em Urucu, na Amazônia, e possui 44° API. Por ser um óleo muito leve, a partir dele são produzidos principalmente derivados de alto valor agregado, como o diesel e a nafta. “No entanto, a produção diária de 50 mil barris desse óleo de excelente qualidade é muito pequena”, esclarece o engenheiro Antônio Pinto, gerente de concepção e alinhamento de projetos da Petrobras.
Na
Bacia de Campos, responsável por aproximadamente 90% do petróleo
produzido em território nacional (extraído da camada pós-sal), a
densidade média do óleo extraído é próxima de 20° API, ou seja, um óleo
mais pesado. A extração desse óleo é muito mais complexa e cara do que a
do óleo leve. Seu refino torna-se também mais dispendioso, em muitos
casos inviabilizando comercialmente a produção.
A
baixa qualidade desse óleo explica porque a autossuficiência
volumétrica alcançada pela Petrobras em 2007 não a livrou da dependência
de importações do óleo leve, usado para fazer um mix que torne o
processo menos oneroso. Por isso a empresa importa óleo leve, e exporta
petróleo pesado, desequilibrando sua balança comercial. “Por sua
qualidade superior, o óleo encontrado no pré-sal de Tupi, na Bacia de
Santos, com 28,5° API, traz boas perspectivas, mesmo diante dos altos
custos de extração”, diz Antônio Pinto. A Petrobras é a operadora desse
campo, onde detém 65% de participação, sendo que a empresa britânica
British Gas (BG Group) possui 25%, e a portuguesa Petrogal/Galp, 10%.
A
empresa brasileira desenvolveu projetos de perfuração que permitiram
atravessar a camada de sal e perfurou o primeiro poço para buscar
petróleo no pré-sal (Parati) em 2005. O processo demorou mais de um ano
para ser concluído e custou US$ 240 milhões. Segundo o assistente da
área de exploração e produção da Petrobras no pré-sal, Alberto Sampaio, a
companhia já consegue perfurar um poço em um período de três a quatro
meses, a um custo de US$ 100 milhões. “Estamos trabalhando para reduzir
cada vez mais o tempo de perfuração e seu custo. Essas são metas
constantes para a Petrobras”, diz Sampaio.
Quanto
à qualidade do gás do pré-sal, Sampaio explica que se trata de um gás
rico, no qual se encontra uma grande variedade de componentes
intermediários (como propano, butano e outros) que permitem a extração
de muitos produtos de valor alto. O ponto negativo, lembra Sampaio, é
que o gás de alguns reservatórios do pré-sal é contaminado com uma
grande quantidade de dióxido de carbono (CO2). Em Tupi, a presença de
CO2 pode variar de 8 a 12%. “Vamos separar o CO2 do gás por meio da
tecnologia de separação por membranas, desenvolvida por fornecedores. O
equipamento identifica as moléculas e as separa. A contaminação
desaparece, mas, evidentemente, o custo aumenta”, diz Antônio Pinto.
Grandes desafios
O campo de Tupi está operando em teste de longa duração (TLD) desde maio do ano passado e a previsão é que essa fase termine em outubro deste ano. A produção estimada inicialmente para o TLD de Tupi era de 14 mil boe por dia, mas após a última paralisação das operações (ocorreram duas, por razões técnicas), em setembro de 2009, foi ampliada a vazão dos poços, levando a uma produção constante de 20 mil boe por dia. “Dessa forma, poderemos cumprir a previsão inicial de produção para o período do TLD feita junto à ANP”, diz Antônio Pinto. Jubarte também iniciou a fase de TLD, em agosto de 2009, mas apenas Tupi entrará em fase experimental de produção em 2010, no mês de dezembro. Esse é o prazo estabelecido para a declaração de comercialidade da área de Tupi junto à Agência Nacional do Petróleo (ANP). Só então será possível obter a concessão definitiva.
O
piloto de Tupi terá produção de 100 mil barris por dia, segundo Antônio
Pinto, e já poderá ser explorado comercialmente. Para ele, “muitos
desafios terão de ser vencidos até lá. As necessidades de redução de
custos não estarão todas solucionadas, o preço do petróleo no mercado
internacional será outro parâmetro importante, mas isso não impedirá a
produção do piloto para fins comerciais”.
Entre
os grandes desafios está o barateamento do custo de produção e do
transporte do gás, da plataforma à costa, economicamente inviável se
ocorrer apenas por gasodutos. “Ainda assim, temos um projeto de
construção de um gasoduto que ligará Tupi ao campo de Mexilhão, na Bacia
de Santos”, diz Sampaio. Outras alternativas podem ser aplicadas, como
GTL (gas to liquid) e GTS (gas to solid). A primeira delas está sendo
desenvolvida pela Petrobras em parceria com empresas estrangeiras que
detêm essa tecnologia. A outra saída é a queima do gás, mas o limite de
queima permitido pela ANP é muito inferior ao que deverá ser gerado na
produção dos poços de petróleo do pré-sal. Assim, para que a produção
dos poços da área do pré-sal tenha sucesso comercial, esse gargalo
precisa ser resolvido (ver artigo de Ricardo Carvalho Rodrigues nesta
revista). No transporte do óleo, a Petrobras informou que terá
provavelmente a convivência entre navio e oleoduto.
Para
a extração de petróleo, a grande dificuldade tecnológica relaciona-se
menos à profundidade do que à instabilidade da camada de sal. A
Petrobras possui vários poços de extração de petróleo em águas profundas
e domina essa tecnologia, mas é a primeira vez que enfrenta o desafio
de atravessar uma camada salina menos dura do que a rochosa, mas também
menos estável. Essa tecnologia pioneira está sendo desenvolvida em
parceria com o Núcleo de Transferência de Tecnologia (NTT) da
Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia (Coppe) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que há anos trabalha em
parceria com a Petrobras.
A
corrosão é também um obstáculo a ser enfrentado para a perfuração dos
poços no pré-sal. Os tubos e as válvulas instaladas no fundo do mar
terão de resistir à alta concentração de CO2 e enxofre de alguns poços, e
à agressividade química do sal. Para lidar com esse problema, Sampaio
informa que a Petrobras utiliza ligas de aço especiais, desenvolvidas
por empresas multinacionais.
A
resistência do aço contra possíveis trincas no ambiente hostil do
pré-sal deverá ser aumentada com a introdução no mercado da tecnologia
CLC (Continuous on Line Control) pela Usiminas, prevista para 2011. A
empresa fez um acordo de transferência dessa tecnologia com uma de suas
acionistas, a japonesa Nippon Steel. Darcton Damião, diretor de pesquisa
e inovação da Usiminas, explica que a tecnologia baseia-se num sistema
de resfriamento acelerado das chapas de aço. “É o estado da arte em
resistência de aço e atenderá às necessidades da indústria de óleo e
gás, sobretudo para operações no pré-sal”, diz.
Outro
importante desafio é compreender melhor a formação geológica do
petróleo e do gás do pré-sal. O sucesso da exploração dos novos campos
depende de uma maior familiaridade com as tão particulares
características das rochas carbonáticas microbianas brasileiras, as
únicas no mundo que alojam hidrocarbonetos. É preciso investigar mais
sobre essas rochas e as três camadas rochosas onde estão o petróleo e o
gás do pré-sal: rocha geradora, rocha reservatório e rocha selante
(camada de sal). Para isso, a Petrobras firmou uma parceria com a
Universidade Estadual Paulista (Unesp).
A
organização logística é mais um gargalo: como suportar o transporte das
pessoas e o suprimento de cargas e diesel para a operação das sondas e
das plataformas de produção? A distância das acumulações do pré-sal da
costa é de aproximadamente 300 quilômetros, que é o alcance máximo da
autonomia de voo da maior parte dos helicópteros. O tempo de navegação
dos rebocadores também é relativamente grande, em função dessa
distância. A solução, ainda em avaliação pela empresa, pode incluir a
implantação de bases intermediárias entre a plataforma e a costa (hubs),
onde haja diesel e carga armazenados e transferência de pessoas de um
transporte para outro.
Outras
pesquisas sobre o pré-sal e formas de vencer seus desafios vêm sendo
desenvolvidas em parcerias entre empresas, universidades e institutos de
pesquisa, muitas em caráter sigiloso, visto que a exploração desse
mercado parece muito atraente e envolve interesses concorrentes. Segundo
Sampaio, não há barreiras para a produção originária das acumulações do
pré-sal.
Quem participa
A petroleira nacional Petrobras, empresa com maior presença nas atividades de exploração e produção do pré-sal (ver box Marco Regulatório), possui inúmeros projetos de pesquisa e desenvolvimento de tecnologias ligadas ao pré-sal. Seu centro de pesquisas, o Cenpes, está organizado em 30 unidades-piloto e 137 laboratórios. Um dos programas do Cenpes é o Pró-Sal – Programa Tecnológico para o Desenvolvimento da Produção dos Reservatórios Pré-Sal –, que tem dezenas de projetos voltados para a busca de soluções nas áreas de engenharia de poço, engenharia de reservatório e garantia de escoamento.
Além
disso, a Petrobras realiza parcerias tecnológicas no âmbito da Rede
Galileu – uma rede de alto desempenho envolvendo quinze universidades
brasileiras, especializada em mecânica computacional e visualização
científica para solucionar seus problemas de engenharia – e em acordos
de cooperação com várias universidades e institutos de pesquisa, como a
Universidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade de São Paulo (USP),
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal de
São Carlos (UFSCar), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
Universidade Federal da Bahia (UFBA), Instituto de Pesquisas
Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT) e outros. Conforme informou a
Petrobras, por meio de sua assessoria de imprensa, entre 2006 e 2009 a
empresa investiu cerca de R$ 1,8 bilhão em universidades e institutos de
pesquisa brasileiros. As obrigações dos contratos de concessão levaram a
empresa a instituir o modelo de redes temáticas em 2006, e desde então o
número de temas abordados cresceu. Hoje já são 50 redes, reunindo 80
instituições no país.
Parques
tecnológicos, como o de Santos e do Rio, abrigam unidades de várias
empresas e institutos de pesquisa em projetos conjuntos sobre o pré-sal.
“O parque da UFRJ destaca-se também na incubação de empresas. Das 53
empresas nascidas no parque, 40% são da cadeia de petróleo, a exemplo da
TGT, Ambidados, Virtually e Pam Membranas”, diz Maurício Guedes,
diretor do parque.
Participam
também dos estudos e desenvolvimentos sobre o pré-sal diversas outras
empresas de diferentes portes que atuam em mercados afins, com ou sem
parcerias com a Petrobras – como os fornecedores Schlumberger, Usiminas,
Baker Hughes, Confab, StrataGeo Soluções Tecnológicas, Flamoil
Serviços, Lupatech, Fugro Lasa, PGS Petroleum Geo Services, CGG Veritas,
entre outros.
Grandes
multinacionais concorrentes do próprio ramo do petróleo também se
destacam na introdução de tecnologias desenvolvidas no mundo todo para
exploração do pré-sal, como as norte-americanas Exxon, Amerada Hess e
Anadarko, as portuguesas Galp e Partex, a espanhola Repsol, a
anglo-holandesa Shell e a inglesa BG.
Riscos ambientais
Se muitas perspectivas econômicas apontam para a lucratividade dos negócios ligados ao pré-sal, o que dizer dos riscos ambientais envolvidos? O CO2, principal gás causador do efeito estufa, está presente em alta concentração nos hidrocarbonetos do pré-sal. Separá-lo do gás natural e reinjetá-lo em seu reservatório subterrâneo é uma das propostas de solução da Petrobras, que declarou intenções de não lançar o CO2 na atmosfera, o que exige mais investimentos e tecnologia.
Ainda
que a concepção do processo de reinjeção do gás no subsolo tenha
sucesso, o refino do petróleo, bem como a fabricação de seus derivados e
os subprodutos de sua utilização são fortemente emissores de CO2, sem
falar nos tradicionais riscos de vazamentos no mar e as sérias
consequências sobre a vida marinha e as cadeias alimentares do planeta.
Soluções para esses problemas também devem entrar na pauta dos
investidores no pré-sal.
Dois
projetos da Petrobras desenvolvidos por docentes do campus da Unesp do
litoral paulista, em São Vicente, e aprovados pelo Promimp, buscam
garantir ações rápidas e eficientes contra acidentes associados à
extração e produção de petróleo na Bacia de Santos. Um deles propõe a
instalação de filtros à base de carvão ativado no fundo do mar, para a
absorção do óleo em casos de vazamentos em navios ou plataformas. O
outro visa à implantação de um centro de referência regional para
estudos, controle e monitoramento de ambientes aquáticos e terrestres,
com o objetivo de proteger a biodiversidade das regiões exploradas.
A
obtenção da licença do Ibama para a prospecção do subsolo por
atividades sísmicas depende da avaliação do estudo de impacto ambiental
apresentado pela empresa que recebeu a concessão da área, em
conformidade com as normas do Conselho Nacional do Meio Ambiente
(Conama). As áreas de águas rasas (de profundidade até 400 metros) e do
entorno do Atol de Abrolhos (BA) – habitat de baleias jubarte – são
protegidas pelo Ibama e não podem receber atividades de exploração. Mas
suspeita-se que, nas regiões prospectadas, os pulsos sonoros da
atividade sísmica possam ser causadores de desequilíbrios na fauna
marinha, resultando em encalhes de golfinhos e baleias, bem como de
alterações nos comportamentos de acasalamento e desova, e mesmo no
desvio de rotas de tartarugas marinhas.